domingo, 7 de fevereiro de 2010

EU SEI, MAS NÃO DEVIA.




Eu sei, mas não devia



Eu sei que a gente se acostuma.


Mas não devia.


A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos e a não ter outra vista que não seja as janelas ao redor.


E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora.


E porque não olha para fora logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas.


E porque não abre as cortinas logo se acostuma acender mais cedo a luz.


E a medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.


A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora.


A tomar café correndo porque está atrasado.


A ler jornal no ônibus porque não pode perder tempo da viagem.


A comer sanduíche porque não dá pra almoçar.


A sair do trabalho porque já é noite.


A cochilar no ônibus porque está cansado.






A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.






A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra.







E aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja número para os mortos.





E aceitando os números aceita não acreditar nas negociações de paz, aceita ler todo dia da






guerra, dos números, da longa duração.





A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir.






A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta.






A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.






A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita.






A lutar para ganhar o dinheiro com que pagar.






E a ganhar menos do que precisa.






E a fazer filas para pagar.






E a pagar mais do que as coisas valem.





E a saber que cada vez pagará mais.






E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas que se cobra.






A gente se acostuma a andar na rua e a ver cartazes.






A abrir as revistas e a ver anúncios.





A ligar a televisão e a ver comerciais.






A ir ao cinema e engolir publicidade.






A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.






A gente se acostuma à poluição.
.





As salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro.






A luz artificial de ligeiro tremor.






Ao choque que os olhos levam na luz natural.






Às bactérias da água potável.






A contaminação da água do mar.






A lenta morte dos rios.






Se acostuma a não ouvir o passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos





cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.






A gente se acostuma a coisas demais para não sofrer.






Em doses pequenas, tentando não perceber, vai se afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá.






Se o cinema está cheio a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço.






Se a praia está contaminada a gente só molha os pés e sua no resto do corpo.






Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana.






E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.






A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele.






Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se da faca e da baioneta, para poupar o peito.






A gente se acostuma para poupar a vida que aos poucos se gasta e, que gasta, de tanto acostumar, se perde de si mesma.




MARINA COLASANTI.

2 comentários:

  1. Amiga ja peguei sim , ja ate postei
    Adorei esse seu texto , concordo com tudo , a gente se acostuma , mas não devia rsr
    bjs

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  2. LIDIA..
    QUE BOM!!!
    ESPERO K TENHA GOSTADO.
    BJUIVOS E UMA ÓTIMA SEMANA.
    LOBA.

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Seu uivo é importante para esta alcateia...não se reprima, se exprima.....
A Loba agradece!!!

Responderei aos comentários aqui mesmo, por impossibilidade de tempo e pela facilidade de poder agradecer a todos ao mesmo tempo. Obrigada. Bjuivos no coração.